O génio e a PlayStation

Custou 105 milhões de euros, mais uns 40 em variáveis, tem uma ambidestria anormal e muita técnica no corpo. Só que Ousmane Dembélé também é o bicho do mato só parece gostar de estar em casa, fechado com os amigos, a jogar PlayStation e pouco interessado interessar em aprender espanhol ou relacionar-se com alguém que jogue com ele no Barcelona.

São três e estão sentados num sofá com todo o aspecto que um sofá confortável tem. Dois estão refastelados, têm os corpos afundados no pousio almofadado. O outro, na ponta, está com as costas chegadas à frente, debruçado sobre os cotovelos, que são apoios para os braços e as mãos que seguram um comando de consola. Todos olham para o gigante ecrã do plasma que os enfrenta.

A sala é escura. No plano não se avistam janelas ou luz natural, ou soluções artificiais que sirvam de compensação. “Quando ele assinou pelo Barça”, fala Moustapha Diatta, “sabíamos que este era um nível que ele queria atingir para evoluir”, conclui, breve, um amigo de infância. A câmara está à sua frente, o plano é mais fechado, há dois tipos encostados ao sofá e o que está ao lado, e que é o protagonista, não abre a boca.

Limita-se a jogar, foca-se no comando de PlayStation que tem entre as mãos, a prioridade está nos dedos que batem nos botões, que ordenam o futebol simulado no ecrã.

O terceiro elemento é Ousmane Dembélé. Por causa dele, os três amigos estão revestidos a vestuário da Nike, despidos de inocência, porque este plano vem de “Ousmane”, mini-documentário feito para o Barcelona, clube patrocinado pela mesma marca. É por ele que estão ali, enclausurados em casa, algures na cidade, alérgicos ao exterior e entretidos com o virtualidade de uma consola.

O cenário era parecido, talvez mais escuro, na sexta-feira, quando um médico enviado pelo Barcelona tocou à porta de casa, inúmeras vezes, até o amigo de Dembélé a abrir. Deu-lhe as boas-vindas, escreveu o “Sport”, a uma residência de janelas tapadas, sem um raio de luz, por volta do meio dia, e com vários jovens ainda a dormirem.

O enviado do clube ali foi porque, trinta minutos após o treino arrancar, noventa volvidos da hora a que o jogador deveria ter aparecido, o francês estava em parte incerta. Não atendia o telemóvel, não respondia às mensagens. Quando, por fim, o fez, disse que estava com problemas no estômago e pediu a visita de um médico. Quando lá chegou, Dembélé foi o último a despertar.

De saúde, nada de anormal se descortinou e o francês foi aconselhado a descansar. No quotidiano, o panorama taciturno, fora a invenção de rumores em torno de hipóteses mais festivas e de má vida – e perante os despojos encontrados –sugeria que tudo era a consequência de uma noitada prolongada pelo vício na PlayStation. Mas é na sua extrapolação para a realidade que está a preocupação do Barcelona.

Porque Ousmane Dembélé, explicando, é uma raridade de futebolista.

Nem é pela precocidade dos 20 anos que já o têm como campeão mundial pela França, mais a estada em Dortmund e agora em Barcelona, dois clubes bem grandes na Europa. É mais pela velocidade a que é capaz de acelerar o corpo. “Nunca o testámos, mas acho que é mais rápido do que eu”, já previu Jordi Alba, tido como o mais veloz da equipa. E mais ainda pela aparente não-preferência por um pé, tanta é a habilidade e destreza com que toca na bola e mexe o corpo, à direita ou à esquerda.

O magro e esguio gaulês, de pernas desproporcionalmente longas para a escala do resto do corpo, é um caos criativo de futebol. Um jogador que precisa apenas da bola para explodir com ela numa aventura contra o mundo, triturador de adversários em fintas até conseguir rematar à baliza, indiferente à perna que tenha de usar. “Acho que sou canhoto”, respondeu, hesitante e soluçante, há três anos, depois de picar um golo sobre o guarda-redes com o pé esquerdo, mas de bater um penálti com o outro - “Tenho mais força a rematar com direito”.

Tão raro é aparecer um jogador com esta inata ambidestria, misturada com muito talento na bola, que o Barcelona rebentou o seu recorde de transferências (105 milhões de euros, mais 40 em variáveis) para o comprar, tinha o francês ainda 19 anos.

O retorno do investimento tem sido rocambolesco. Os prometedores primeiros três jogos da época passado foram cortados, ao quarto, por um coxa rasgada em Getafe, ao esticar-se num toque de calcanhar para impedir que a bola saísse de campo. “Um jogador mais experiente talvez não o tivesse feito”, opinou, na altura, o treinador Ernesto Valverde. Esteve quatro meses a recuperar, o mesmo número de golos que marcou em 24 jogos irregulares e inconstantes.

Esta temporada, vai com seis, na Supertaça de Espanha que resgatou para o Barcelona e espalhados por encontros em que a equipa estava a perder (Rayo Vallecano, Real Sociedad, Valladolid). Mas quase tudo o que há de excelente no génio inventivo parece ter o seu contraponto.

E não é apenas na inconstância e desabituação ao estilo particular de jogo do Barça – onde a ideia é os jogadores associarem-se e dependerem uns dos outros, com a bola. Os problemas parecem estar no feitio de Ousmane Dembélé.

Ou na bolha em que estará enfiado, causa das preocupações do Barcelona e consequência do entorno do ainda adolescente. A personalidade que o guia é tímida e introvertida, traços que o tornam pouco sociável a par do castelhano que pouco arranha, mesmo com quase ano e meio contados em Espanha. É o que se diz e escreve sobre Ousmane: genial, apesar de caótico no estilo técnico com que dá coisas à equipa; e fugidio nos relacionamentos sempre que não está em campo.

Para o agradar, o Barça chegou a trocar-lhe o chauffer. Atribuiu-lhe um cozinheiro novo, um francês, para garantir que o mantinha na linha na cozinha e eliminar as desculpas possíveis. Até a contratação de Éric Abidal, antigo vencedor de Ligas dos Campeões com o clube, para diretor desportivo, teve em conta o idioma comum e o potencial para ser uma figura com a omnipresença possível na vida do reservado gaulês.

Como o era Thomas Tuchel, o treinador que o tirou de Rennes para o colocar em Dortmund, adornando-o com atenção e conversas durante, pré e pós-treinos. Mimando-o na fronteira do aceitável entre o professor e a figura paternal que serve de exemplo aos mais novos. “Humanamente, o relacionamento que tem com os jogadores é incrível. Está lá em cima, não há melhor”, elogiou Dembélé, há três meses, quando o alemão já estava a tomar conta do Paris Saint-Germain.

Valverde, um treinador mais sério, dono de um saco com não tanto espaço para ser paciente face a jogadores que saiam da linha, não é Tuchel. Nem os jogadores do Barça têm o dever de fazerem com que seja sempre o mesmo lado da corda a ser puxado, face a um jogador cujas reservas, timidez e barricadas em casa junto dos amigos de infância vão sendo sempre repetidas e badaladas pela imprensa espanhola. Até porque no Barcelona há mais peixe graúdo, provavelmente a precisar de mais atenção.

Confiando no que passa, entre os rumores, porque nem quando o rei faz anos o introvertido Dembélé concede muitas entrevistas, o francês refugia-se em quem lhe é próximo e nada mais faz para lá disso. No mini-documentário, por exemplo, conta-se que decidiu ir para as escolas do Rennes após ouvir um último conselho de um amigo de infância de La Madeleine, bairro de Vernon, nos arredores de Paris, não atendendo as chamadas do empresário.

Ousmane fez-se no bairro onde as crianças chamam “Dembouz” à finta que vem de simular um remate para cravar o adversário à terra e arrastar a bola com o pé que ia dar o pontapé. Crianças que ele e os amigos foram, em tempos, para crescerem juntos e viverem a prosperidade crescente de Dembélé, que para o exterior, em Barcelona, apenas se abre a Samuel Umititi, companheiro de seleção.

Pouco mais se sabe e difícil é saber mais. Nem ele, por trás dos olhos de grandes órbitas e redondamente esbugalhados como um personagem dos Simpsons, parece saber muito bem quem é Ousmane Dembélé, a preocupação que mais dinheiro significa no Barcelona e jogador incapaz de cumprir a missão de se descrever com três palavras.

“Sou um brincalhão, rio muito e…”


FONTE: TribunaExpresso