Gabriel, o taxista: do FC Porto e do Sporting às ruas da Invicta

«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para [email protected]


Parte 1. 16h30, 7 de janeiro: Rua do Tenente Valadim, Porto

O roncar do Mercedes bege ouve-se ao longe. À hora marcada, aí está ele, em frente à redação do Maisfutebol. A matrícula não engana: maio de 1987. É um dragão que vem ao volante.
Gabriel, 64 anos, futebolista do FC Porto durante 14 anos. Ah, e do Sporting mais quatro. O bigode negro da caderneta de cromos é agora grisalho, mas continua magro, em boa forma. Apesar do tabaco.
«Só é pena isto [aponta para o cigarro]. Quando era futebolista fumava três por dia. Um depois do pequeno-almoço, um depois do almoço e outro depois do jantar. Bem, vamos lá amigo?»
A três dias do clássico de Alvalade, nada melhor do que passar duas horas com quem esteve dos dois lados da barricada. Gabriel foi sénior do FC Porto de 1974 a 1983 e leão de 1983 a 1987. Ao currículo junta 20 internacionalizações pela Seleção Nacional.
Um lateral direito de excelência, diz quem se lembra bem de Gabriel, convidado do DEPOIS DO ADEUS. «Olhe, apareci a uma prospeção no Estádio das Antas e fui escolhido. Eu vivia no bairro de Contumil, lá pertinho, e fui levado por colegas. Estava a engraxar os sapatos, passaram por mim e acompanhei-os. Nem queria treinar, porque achava que não tinha muito jeito. Mas puxaram por mim e lá calcei as chuteiras.»
Gabriel mete a primeira e arrancamos. O desafio é simples. Passear com o nosso jornal por locais marcantes da sua época como futebolista profissional. «Ora bem… temos de começar pelo campo da Constituição, não é?»


Parte 2. 16h48: Campo da Constituição, Porto

«Conheço estas ruas como ninguém. Só não conduzo de olhos fechados porque era capaz de ser multado.»
Gabriel ri-se e nós rimo-nos com ele. Já voltaremos ao princípio de tudo, mas antes importa saber isto: o que leva um antigo profissional de FC Porto, Sporting e Seleção a ser taxista aos 64 anos?
«Olhe, quando saí do Sporting, em 87, comprei este táxi para o meu irmão. Ele faleceu há oito anos. Chegou a jogar no Salgueiros, era um bom lateral esquerdo. Chamava-se Mendes», explica o antigo internacional português, sem tirar os olhos da estrada.
«Entretanto, deixei de jogar, ainda investi num café e treinei alguns clubes. Peniche, Feirense, mas chateei-me. Não era para mim. Infelizmente, há oito anos, o meu irmão faleceu e eu senti que tinha de assumir esta responsabilidade. Passei a ser o Gabriel taxista.»
Dorme pouco, trabalha muito e é reconhecido «diariamente nas ruas do Porto». «Tenho tantos episódios», suspira Gabriel, enquanto acena para um semáforo. «Aquele senhor chegou a jogar futsal comigo no Académico do Porto.»
Travagem a fundo, vermelhos e mais vermelhos, o velhinho Mercedes lá segue caminho. «Eu era um lateral muito ofensivo, mas comecei por ser médio. Era essa a posição que eu idealizava para mim. Certo dia, testaram-me a lateral e nunca mais saí de lá. Tinha uma capacidade física notável, atacava muito numa era em que os laterais só serviam para não atrapalhar.»
Rua da Constituição, encontrar um estacionamento é um problema. Mas Gabriel tem uma solução na manga. «Deixe-me ir ali falar ao rapaz da loja do FC Porto. Se a Polícia aparecer ele avisa-me e saímos depressa.»
Rápido, cheio de vida, Gabriel entra connosco na Constituição. «Só o muro de fora é que está igual. Aqui havia um rinque onde se jogava basquetebol e hóquei [aponta para a zona perto da entrada] e ali estava a única bancada. Atrás dela ficava o pelado onde esmurrei centenas de vezes os joelhos. Veja-me bem agora estas condições.»
No moderno sintético treinam dezenas de miúdos. Um deles é filho de Ricardo Carvalho que, por coincidência, chega na mesma altura. Não reconhece nem repara em Gabriel. «É normal, é muito mais novo do que eu.»


Parte 3. 17h25, Praça do Dr. Francisco Sá Carneiro (Velasques), Porto

O regresso à Constituição emociona Gabriel. «Desculpe, mas sabe que tudo isto mexe comigo. Eu amava jogar futebol, amava. Vivia para isso. Sabe como eram as minhas férias? Descansava uma semana, dedicava-me à família, pescava. E nas restantes três? Treinava sozinho, corria à noite na feira de Ermesinde, onde morava. Quando a pré-época começava, eu já voava e os outros iam a passo.»
Próxima paragem: café Bom Dia, na Praça Velasques. «Era lá que a malta do FC Porto se encontrava, antes e depois dos treinos. Ainda vou lá muitas vezes, os empregados são quase todos antigos.»
Gabriel sobe aos seniores do FC Porto com Béla Guttmann. E faz parte da equipa que em 1978 acaba com o jejum de 19 anos de campeonatos nacionais. «Ainda fiz um ano emprestado ao Sp. Espinho, mas depois voltei e tive a felicidade de ser campeão em 1978 e 1979. Olhe, foi a primeira vez em que entrei numa discoteca. Eu era tão calminho, tão regrado, que os meus colegas até se riam de mim. Foi no Twins, na Foz. O plantel de 78 foi para lá festejar o título, já com o senhor Pedroto», conta Gabriel.
Subimos Damião de Góis até ao Marquês e seguimos em frente para Fernão Magalhães. «Vamos lá tomar um cafezinho ao Bom Dia.»
«O senhor Pedroto gostava muito de mim. Ele dizia que nós jogávamos sem extremo direito porque não precisávamos. O Gabriel fazia o corredor todo.» Gabriel ri-se, uma gargalhada genuína. «Atenção, o senhor Pedroto tecnicamente era um génio, um génio. Mas… bem, ele para ganhar um jogo era capaz de tudo. Levava tudo à frente. E foi por isso que eu saí do FC Porto aos 29 anos.»
A tristeza toma conta da voz do ex-lateral de FC Porto e Sporting. É a única mágoa da carreira. «Ele conhecia-me há muitos anos, sabia que eu não me escondia, nunca lhe falhava. Nos treinos físicos, tantos colegas eu tive que se escondiam e não corriam... eu não, estava sempre à frente do pelotão. Eu e o Cubillas, um craque em todos os sentidos. Isso demonstrava a nossa seriedade. E quando precisei do senhor Pedroto, ele não esteve bem.»
Tudo acontece na época de 1983, já perto do final. «Num jogo contra o Sporting, nas Antas, o vento levava tudo à frente. Numa jogada pelo ar eu calculei mal o tempo de salto e caí mal, todo torto. Rompi o adutor. A dor era insuportável, apanhava-me a barriga e a perna direita.»
«Tomamos o café ao balcão, como eu fazia dantes?» Gabriel faz questão de pagar. E de contar a história sobre a saída das Antas. Os empregados e os clientes cumprimentam-no, todos o conhecem por estas bandas. «Os meus pais viviam aqui perto e eu joguei no FC Porto, sabe como é.»
E então, o que lhe fez o senhor Pedroto? «Tive de ir a França fazer exames, porque em Portugal ainda não havia aparelhos para estes diagnósticos. Eu sentia as dores, mas os médicos não identificavam o problema. Treinei e joguei limitadíssimo, a sofrer, com o adutor direito rasgado.»
«Vamos embora?»


Parte 4. 17h50, Alameda do Dragão, Porto

Última paragem, Estádio das Antas. «Era aqui», aponta Gabriel para os terrenos agora entalados entre a Torre das Antas e o Estádio do Dragão. «Tantas memórias boas.»
«Bem, em frente. Estive um mês e meio sem jogar, o derrame espalhou-se pela minha perna e até me quiseram operar. Mas fiz tratamentos, tomei anti-inflamatórios e fui aguentando. O que eu sofri! Só podia correr devagarinho, sem alargar a passada.»
E chega o último jogo da época. «O senhor Pedroto vem ter comigo e diz ‘Gabi, tens de jogar porque eles têm um extremo que nos pode dar trabalho’. Eu fui muito claro: ‘senhor Pedroto, eu jogo nem que seja de canadianas, mas sabe que eu ando limitadíssimo’. E lá fui para o jogo. Tomei Voltarens, enfim, fiz tudo o que podia.»
«Claro que o meu rendimento não foi o mesmo. Mas ganhámos. Sofri muito e estava à espera de uma palavra de apreço no fim, um abraço. Mas não, o senhor Pedroto vê-me e com mais modos disse ‘ia perdendo o jogo por tua causa naquele lance’. Bem, eu tive de me controlar muito para não fazer nenhuma asneira. Fui para o balneário, a mancar, e prometi a mim mesmo que enquanto aquele senhor estivesse no FC Porto eu não voltava a vestir aquela camisola linda.»
Magoado, Gabriel aceita o convite do Sporting. «Fui ao Sindicato de Jogadores, invoquei problemas psicológicos para rescindir e foi-me dada razão. Ainda recebi um convite milionário dos EUA, através do António Simões, mas já tinha dado a minha palavra ao presidente João Rocha, do Sporting.»
«Nunca mais falei com o senhor Pedroto. Até ele falecer. Infelizmente, não tivemos tempo para fazer as pazes.»
A VCI não é um local recomendável em hora de ponta. Descemos a Constituição e é um tirinho até à zona da Boavista. E as diferenças entre FC Porto e Sporting?
«Dois clubes enormes, gigantes. O FC Porto tinha a vantagem de proteger mais o balneário, de ser mais familiar. No Sporting os jornalistas entravam, falavam com quem queriam, era tudo mais aberto. Mas a grande diferença nessa altura era na prospeção.»
Como assim? Nos anos 80? «No FC Porto, os miúdos apareciam nas captações e o clube escolhia os melhores. O Sporting já tinha uma rede de olheiros de Norte a Sul e descobria mais cedo os miúdos das outras zonas do país.»
Já passa das 18 horas quando o táxi de Gabriel volta ao ponto de partida. O fiel táxi de Gabriel. «Gosto disto, sabe? Falo com muita gente, ajudo quem posso e fico feliz por ainda se lembrarem de mim.»
«Olhe, este taxista aqui à frente chegou a jogar comigo em Espinho.»
O táxi arranca, o jornalista dá uns passos até à porta da redação. E sente um toque no braço. «Olhe, desculpe, aquele não era o Gabriel que jogou no FC Porto?»


FONTE: MaisFutebol